Odeie o pecado, ame o pecador: Qual o problema com esse ditado?
- Gabriel Silva
- 20 de out. de 2024
- 5 min de leitura
Atualizado: 21 de out. de 2024
Acho que todo mundo, tanto no meio cristão quanto fora dele, já ouviu essa frase ou alguma variação dela. “Eu odeio o pecado, não o pecador”, “Deus condena o pecado, mas ama o pecador”, “Você deve odiar o pecado e amar o pecador”. Alguns pastores até tentam adaptar a frase em suas pregações, de maneira que soe mais acolhedora e mente aberta, falando algo do tipo: “A igreja é lugar de pecadores, todos são bem-vindos, mas a igreja não é lugar de permanecer em pecado”. Uma das coisas que me fazem sentir um pouco de vergonha, apesar de entender o que me levava a esse raciocínio, é saber que eu ouvia esse tipo de coisa e achava que isso era uma virtude. Quando cristão, essa frase simbolizava para mim um amor verdadeiro, que permitia aceitar o outro e a si-mesmo, com suas falhas, fraquezas e dificuldades, de maneira que eu poderia amar uma pessoa não pelo que ela faz, mas pelo que ela é. Eu achava que isso era o mais próximo que eu ou qualquer outra pessoa poderíamos chegar de amar como deus ama. Eu não podia estar mais errado.
Um ditado popular se torna popular pela sua capacidade de transmitir uma informação útil de maneira econômica. Ele transmite uma ideia sem que seja necessário dissertar a respeito dela. Basicamente, ele tem a função de ensinar algo com o mínimo de esforço. “Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura” ensina sobre a importância da perseverança e da conquista alcançada de maneira gradual. “Onde há fumaça, há fogo” ensina a suspeitar de sinais óbvios quando estes estão presentes. “Não julgue o livro pela capa” ensina que as aparências enganam e algo que à primeira vista parece bom pode ser ruim, e vice-versa. Apesar de ter suas utilidades, essas frases não são universais. Elas não tem como ser aplicadas em todos os contextos. Há situações em que é melhor desistir do que insistir. Nós podemos enxergar sinais que são produtos de preconceitos ou experiências traumáticas e não da situação em que nos encontramos. As aparências podem enganar, mas tem ocasiões em que elas exibem verdades escancaradas. O mesmo se aplica ao ditado discutido nessa publicação. “Odeie o pecado, ame o pecador” tem o objetivo de demonstrar que todos somos amados por deus, e devemos tentar emular esse amor com o próximo, ao mesmo tempo que não devemos aprovar os erros que cometemos ou são cometidos por eles. Afinal, se amamos alguém, não queremos vê-los cometendo os mesmos erros toda hora, correto? Essa é a lição que esse ditado busca passar, porém, essa visão é bem superficial. Quando contrastamos essa frase com a prática, vemos que ela é utilizada com um objetivo bem específico: demonstrar quão bom é o amor cristão. Esse ditado popular possui então uma função além desta que já citei aqui: ele serve como propaganda. Ele busca vender uma imagem positiva para que aqueles que as ouvem não se atentem para a realidade cruel do contexto em que essa frase costuma ser dita.
Este ditado não especifica pecados, mas, na prática, vemos ele sendo utilizado para se referir a pecados específicos. Apesar da ideia de que não existe hierarquia de pecados (”Não existe pecado, pecadinho, pecadão”), alguns pecados são mais odiados do que outros e, consequentemente, alguns pecadores são menos amados do que outros. Alguns pecados são até mesmo tolerados, e às vezes reforçados. Mentiras e roubos são tolerados dentro das igrejas o tempo todo quando estes as favorecem de alguma forma. Nesses casos, é comum encontrar uma justificativa. E mesmo quando não há justificativa, o perdão vem bem mais fácil e bem mais rápido.
O problema com esse ditado começa quando o pecado em questão está relacionado a “imoralidade sexual”. A lógica utilizada para dar uma prioridade para esse tipo de pecado se encontra no seguinte versículo:
Fujam da imoralidade sexual. Todos os outros pecados que alguém comete, fora do corpo os comete; mas quem peca sexualmente, peca contra o seu próprio corpo. 1 Coríntios 6:18
No contexto bíblico, a imoralidade sexual pode se referir a sexo antes do casamento (1 Coríntios 7:2), homossexualidade (Mateus 19:4-5), adultério (Êxodo 20:14; Lucas 16:18) e pornografia (Mateus 5:28; Romanos 6:19). A passação de pano que adultério, pornografia e fornicação recebem é extrema, ainda mais quando estes pecados são cometidos por homens, sendo mais naturalizados devido a uma suposta libido mais difícil de ser contida (argumento que mais fere homens do que os ajuda). Quando são cometidos por mulheres, o julgamento é mais pesado, frequente e possui consequências mais duradouras. Mas o principal alvo do “odeie o pecado, ame o pecador” é a homossexualidade.
Alguns pecados são mais odiados do que outros e, consequentemente, alguns pecadores são menos amados do que outros.

Não se vê cristãos marchando e protestando contra mentiras, roubos e corrupção que ocorrem amplamente na sociedade, até mesmo dentro de suas próprias igrejas, e olha que Jesus os incentiva a fazer isso (Mateus 7:3-5). Mas frequentemente se vê cristãos se organizando de maneira sistemática para lutar contra a homossexualidade e outras “consequências da imoralidade sexual” (como o aborto).
Alguns argumentam que ser homossexual não é pecado, porém, agir conforme os desejos homossexuais é. Tudo isso sem um pingo de evidências de prejuízo moral ou de saúde que tornaria a homossexualidade algo danoso. Apenas porque o livro de sua religião diz que é errado. A esses, eu convido a refletir sobre uma vida sem amor, sem carinho, sem desejo e sem paixão a serem compartilhados com uma pessoa que sente e deseja o mesmo, e a apontar como renunciar essas coisas torna sua vida mais rica mesmo enquanto as deseja.
Esse selecionismo é traduzido em ação no nível social, ao ponto que toda uma cultura se desenvolve ao redor dessa ideia. É impossível dissociar a homofobia presente nesse país do amplo viés religioso presente aqui. Quando unimos isso ao caráter proselitista do cristianismo, vemos facilmente a propagação de ideias danosas. Quando os outros, porém, se sentem ofendidos ou atacados por esse proselitismo (com todo o direito), é comum como cristão sentir que eles estão atacando a fé e redobrar os esforços para atacar o "pecado". Assim, odiar o pecado e não o pecador evolui de forma que um não se diferencia do outro.
A moralidade e, consequentemente, a imoralidade, são produtos do tempo, da geografia, da língua, da cultura, de diversos fatores. São mutáveis e evoluem com a sociedade. O que torna algo moral ou imoral precisa ser avaliado com o conjunto de conhecimentos, experiências e valores que temos hoje, não com base em textos escritos numa época em que se dependia de mitos para compreender a realidade.
Há ocasiões em que é possível odiar o pecado, sem odiar o pecador. Eu posso odiar a mentira que alguém me contou sem odiar aquele que mentiu para mim. Eu já fui assaltado algumas vezes, mas não odeio quem me assaltou. Mas isso se aplica quando se odeia algo que alguém faz, não algo que alguém é, e nos contextos em que frequentemente somos convidados a odiar o pecado e amar o pecador, o que é injustamente considerado pecado é indissociável daquilo que se é.
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